Sentei no chão da cozinha e, enquanto segurava aquela carta branca endereçada de Montevidéu, vivi uma espécie de frenesi misturado a um ardor infernal que fazia meus batimentos voarem. Com um nó na garganta, olhei o envelope fixamente e não sabia se teria coragem de abrir, mesmo com uma ansiedade que me fazia querer abraçar o que não existia ou que não tinha nome.
Estava farto de surpresas, partidas e recomeços, e não queria que minha vida suficientemente rasa se revirasse e transformasse de novo, o que por um tempo até gostei, achando que tudo isso era meu oxigênio já transformado em energia. Mas sabia que desde o momento em que tive aquela carta em minhas mãos, minha vida já não era a mesma mais uma vez. Gostaria apenas de viver sem as coisas intangíveis e simplesmente repetir a rotina até morrer: subir as duas ladeiras de Santa Tereza, virar à esquerda, abrir o portão cinza, fechar a porta branca, tirar o sapato, sentar no jardim, olhar as estrelas, pensar em amores e dormir.
Por um instante, sentado naquele chão gelado, desviei o olhar e fitei o trecho de um poema de Rimbaud que colocara na geladeira há 11 anos:
"Pois tu me liberas
Das humanas quimeras,
Dos anseios vãos!
Tu voas então..."
Nesse momento, o tempo, o silêncio e todas as interferências de um plano físico pareciam ter sumido, e só existia eu. Um eu que sempre precisou do vazio e do nada para sobreviver, mas que por vezes tinha a esperança como carrasca. Não sabia se conseguiria passar por esse limbo outra vez. E meu cansaço ia aumentado proporcionalmente à vontade de chorar, o que há muito não fazia. Apoiei os braços sobre o joelho e como um explorador cauteloso que não sabe o que vai encontrar, comecei delicadamente a abrir a carta. Eis:
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03/02/1995
Sei que prometi não te deixar, mas precisei ir.
Desde então, já se passaram 11 anos e 2 meses, mas ainda lembro como se fosse hoje e sinto como se fosse hoje a primeira vez que tomamos conhecimento da existência completa um do outro, o que não precisou de muito tempo. Ouvi as batidas do seu coração de longe, mesmo você estando no seu estado mais calmo do mundo como sempre foste. Aí, do outro lado da rua, olhaste-me com a serenidade de um flamingo que não incomoda, e, então, nos encontramos. A partir dali eu não sabia o que fazer, porque tive um sentimento vertiginoso e começava a lhe querer mesmo assim, porque aos poucos a energia de teus olhos me contava que estavas com disposição para partilhar solidão. Precisávamos um do outro, e cada instante precisava cronicamente da tua presença.
Ouvi seu coração bater num ritmo crescente que beirava a explosão. Era a primeira que ouvia o coração de alguém bater tão de longe, mas tão de perto e forte, e nem sabia que isso era possível, o tanto que tentei me livrar momentaneamente da sensação, mexendo nos ouvidos e apertando os olhos. Achei que pudesse ser a loucura que tentava se apossar por estar tanto tempo sozinho. Mas não era. Também não era sonho, porque sonho, nem ilusão, porque lhe via materializado.
Foi então que parei de pensar por um segundo e neste exato curto lapso de tempo foi onde me conectei a ti de uma vez. A batida acelerada de seu coração virou trilha sonora enquanto via-te imóvel com as mãos ansiosas e rente ao corpo. Quanto mais olhava, mais tinha vontade de tirar-te dali, mas não sabia como. Queria, mas talvez o medo que lhe habitava por ter passado tanto tempo só e o abismo que nos mantinha separados, fazia com pensasses que eu não existia. Mas, sim, eu existia em carne, corpo, espírito e salvação. Era isso. Eu era tua salvação e estava ali para ser inteiramente seu, partilhar da mesma solidão, segurar tua mão, abraçar-te nas tempestades, cuidar de todas as tuas febres, manter uma amizade verdadeira e viver uma aventura que não recordava de ter vivido.
Talvez o que tenha nos afastado foi sua incredulidade em mim, mesmo eu dizendo todos os dias que gostava de ti - o que era recíproco. Mas sei que a dificuldade em atravessar a rua era o causava seu temor sobre mim e que aumentava sua insegurança. Mas não era impossível atravessar, bastava paciência. Infelizmente, não consegui lhe tirar daquele lugar e o que me restou foi olhar-te em progressiva apatia e sentir as batidas de teu coração esmorecerem pouco a pouco - o que automaticamente me fez começar a entrar num mesmo estado de apatia e tristeza porque não queria me separar de ti. Mas precisei, porque teu medo nos afastou.
Desculpe, eu estava aqui sentado e resolvi contar o que sinto e não consegui falar.
Fim
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