terça-feira, março 26, 2013

PASSAGEIRO!


Renasço todo dia e saio do útero virado de cabeça para cima. Sou trazido para o mundo carnificinalmente, enfadado ao compromisso e ao destino de ser igual e diferente. Não me faço perguntas. Sou mudo e quieto como o mangue, pouco notado, mas desempenho uma função já que estou aqui. A verdade é que vou me anulando com medo de me perceberem e me intimarem para viver. Vou me anulando e me acumulando como uma bomba de efeito apreensivo prestes a explodir num vulto. Mas eu renasço, e ainda não entendi por quantas vezes e com que intenção. Meu tempo se esgota todo dia, antes do fim do dia, antes que haja tempo de pronunciar "eu". Me liberto do invólucro oblíquo, mas logo estou preso dentro do mundo - que me sufoca, me obriga a lutar e me caça como um último ser - outra vez.

quinta-feira, março 21, 2013

O PERIGO QUE ÉS!

O cheiro de suor competindo com o cheiro do campo de figueiras despertam-me a lembrança do som da tua docilidade e da tua face tão sexual e cândida. É assim que gosto de viver, me confundindo todo, como quem vive cheio de brio para o desconhecido. Nesse meu esconderijo, o ar tem uma fumaça rala, e os mosquitos orbitam na minha cabeça absorta. Absorta em quê? Eu sou uma coisa, e tu és um pouco como a loucura que me oxigena. Isto me põe sempre à beira: lançar-me em tudo que não tem nome; e não é no vazio, porque vazio tem nome. Enviveço pelas pontadas que sinto enquanto estou a conjugar-te. E é só. Conjugar-te vai além de viver o perigo que és - uma mistura de buraco negro e felicidade. 

sábado, março 16, 2013

OITAVO SACRAMENTO!

Desceu apressado do bonde no exato momento em que a via-sacra se preparava para a quarta estação. Já era tarde para aquele bairro residencial que se recolhia cedo. Daquele instante em diante, baixou a cabeça e adaptou os passos ao modo de andar de todos aqueles que reviviam o caminho de entrega Dele, depois de um dia de trabalho extenuante. Havia duas pessoas na porta de uma casa simples ao redor de uma altar improvisado coberto por uma toalha de bordado branco e uma vela que tinha a chama endoidecida pelo vento de fim de verão à espera do que viria. Aos trinta e tantos anos, não era um religioso típico, principalmente, porque, ao longo da vida, deixara de ir à missa aos domingos. Mas era simpatizante de São Judas Tadeu, por seus motivos próprios e incontestáveis, e sabia rezar o credo. Olhou para trás uma única vez, já perto de virar a esquina, e a liturgia tomou seu coração, lembrando de suas dores, e perguntando-se quem iria carregá-las e chorá-las - um pouco inconformado e aceitativo ao mesmo tempo. Por um instante pensou em ficar, mas temeu que Ele, coberto de complacência e luto, esquecesse de lhe proteger na última quadra que faltava para chegar em casa.

sexta-feira, março 15, 2013

SÚPLICA DO PRÍNCIPE!

Abre-te os braços, solidão, que o destino hermético vai enviar-me a ti. Evola-me a tua casa escura, pronta para o meu comportamento sazonal, que distrai-me com o jardim de fúcsias bailarino ritmado pelo caos. Refestela-me na tua volúpia e diz-me que tua delícia é minha, acolhendo este coração para ti. Sou eu que te clamo, e entrego-me mergulhando entre os nenúfares para que me escolha como teu preferido. Acompanha-me nesta saudade hedionda que trago para usufruirmos enquanto nos abraçamos e estamos a sós. Com a voz aguda, e a face entre a luz e a tempestade, chamo-te para que te enlaces a mim, o eterno príncipe da Cavalaria das Sombras, num silêncio sublime que ninguém jamais saberá.

quarta-feira, março 06, 2013

A PONTE!

Atravesso a Ponte de São Pedro e sinto-me pequeno pelo mar, pelo concreto, pela aurora; e cativado por tudo isso. Enquanto caminho, a estrutura protetiva lateral de arame treliçado tremelica invadida pelo vento da costa oeste, o qual eu não entendo, se contorcendo e se dilatando e reclamando por conta dos meus dedos - aos poucos empoeirados - que tateiam seu espaço. Sou egoísta e continuo grosseiro dedilhando a fina leve estrutura numa viagem de um caminho só através do passeio suspenso de um metro e vinte centímetros de largura. Fico cianótico, do tom fraco do céu que vai embora e aprecio, e, gentilmente, se comunga com o rósea pesado que mimetiza a apoplexia que quase tive ao subir ali. A cabeça aérea é sufragada pelo espírito que, como uma ordem divina, requer atenção para o horizonte-paisagem. No centro da ponte, passam carros velhos e novos, ininterruptamente, formando uma redoma sônica que é capaz de hipnotizar meu corpo e acalmar meu coração. Vou indo. Olho para cima, vendo a simetria precisa do ângulo perpendicular robusto de aço entrosado ao concreto que segura tudo aquilo, pensando nos amores que não suportei - e que não me suportaram. No fim, agito o lírio frágil que tenho na mão esquerda por cima da cabeça dando um sinal: tenho a vida nas mãos.

terça-feira, março 05, 2013

-ME-TE!

Gosto de surpresas, mas só as que te envolvem. Às vezes, prefiro a quietude e rigidez da vida parada ao medo vigente que a marola do novo pode me dar. É porque tu sou eu, só porque tu é ti. Tenho tanto para fazer, ao mesmo tempo que não tenho nada - nada é alguma coisa. Tanto apreço a cultivar. Tanto amor. Deixa-me te mostrar que sou destemido. Queria-te ouvindo-me do jeito ofegante que estou e olhando-me do jeito feio que pareço. Deixa-me falar-te como sou: enche o copo de água, tapa com tua mão; vira-o de cabeça para baixo e solta a água presa. Vou para tantos lados que perco a integridade indo de canto em canto. E seguramente volto a prender-me e impregnar-me outra, e tantas outras vezes em ti. 

ATRAPALHADO!

Cansa-te de me enganar que aqui canso-me de querer o aposento escuro dia após dia, refestelado na solidão e inocência mais fatais que existem. Para mim, existe uma só. Vira-te de costas e sais andando com tua sombra esmiuçada - o único merecimento -, e vais até onde tua vida suportar. Fica-te tácito, pois tenho medo de ti, quando te tornas maiúsculo e superlativo. Não sou igual a ti, que te escondes em tua casa apalaçada junto com a verdade, e tapa os olhos com dedos abertos para tudo. O sadismo, então, põe-me a pensar o que estás a fazer, desencadeando em meu corpo uma doença, que me leva a admitir: toda cólera que sinto por ti é falácia.

PRONOME!

Estou decúbito, pois, no momento, não tenho o corpo viril e livre como na era que não conhecia os impropérios de se viver e sobreviver. O barulho da máquina corta piso formiga em minha mente opaca abruptamente, indo de encontro à pergunta que forçada e dolorosamente tento formular para um dos fantasmas que me incomodam. Levo a mão à cabeça, cansado da batalha diária, impreterivelmente, quatro horas da tarde - na aurifulgência da saudade. É a hora que não me caibo. A febre me dolore, involuntariamente me virando de lado, me levando a um auto-abraço solitário. Posso estar "com", mas sou só. E vivo disto, disso, daquilo. Estou quase - todos os dias. E só não consigo terminar de fazer a pergunta porque vivo assim.

NATURAL!

Às cinco da tarde meu coração para. Dou-me conta que a vida é um pouco mais difícil para quem não é. É o quê? É! Não há chuva, não há mosquito, há temor, nervoso. Há um ser adestrado, domesticado pelo ímpeto da solidão, deixado de canto pelo tempo. A insegurança não é uma escolha. Mas o medo da próxima hora é verde - de esperança e de pode-se avançar. Não é possível ter certeza. Não sou natural, mas venho da natureza. E sou o quê? 

domingo, março 03, 2013

DÉCIMO TERCEIRO!

Tento ser o volume correto, mas o eco me escapa, me transborda - o eco que sou eu também. Doido e violento, subitamente se acaba, e me acabo, porque é a frieza natural da vida. A vasilha de metal que cai na cozinha quieta exatamente agora - também eu -, cativa por três segundos-luz do décimo terceiro ao primeiro andar que dormita e suporta o domingo ordinário. Sou raso, porém raso de entendimento de sentimento e relevância para a vida, já que não vivo mais do que o necessário. Tenho dois nomes. Mas, infelizmente, não é possível ser. Não sou fantástico, mas existo. É preciso parar de não me acostumar com o jeito sem graça que vai me destruir.